Revelação Lunar - Parte IV
- Búzio o Bardo
- 11 de ago. de 2022
- 10 min de leitura

“Astrid, já falamos sobre isto! Tu não sabes quem estava a falar contigo!” Volta Garth a reiterar à filha, que não se demove com os argumentos do pai. Afinal, o que saberia ele, era ela que tinha o dom da magia da terra, tal como o avô, e não o seu pai.
"Tu não sabes isso! Como podes saber?” Pergunta Astrid com petulância, levando Garth a inspirar longamente tentando controlar a irritação crescente.
“Posso saber algo sem a experimentar, não preciso de bater com uma pedra na cabeça para saber que dói!" Diz-lhe o pai em tom paternalista. Astrid revira os olhos.
“Não me trates com uma criança! São coisas completamente diferentes! Mas, ainda assim, um dia tiveste de bater com a cabeça para saber que dói. Tu não sabes o que eu sinto…” Refuta Astrid com as últimas palavras a saírem-lhe trémulas da garganta, levando a uma pausa do seu pai, enquanto a observa. Esta luta por reter as emoções por detrás dos olhos, mas ele conhece-a bem demais para se deixar enganar. Comovido, dá um passo em frente e coloca-lhe a mão, reconfortante, sobre o seu ombro. Gesto que quase a faz desistir.
“Saberás, um dia, as dificuldades de cuidar um filho. Em todos os momentos me pergunto se a decisão foi a certa, no entanto, sempre que a questão é a tua segurança, farei tudo o que puder! Quero-te a salvo, mesmo que feches o teu coração de ódio por mim.” diz-lhe o pai, com suavidade. As lágrimas retidas por frágeis diques nos olhos de ambos. Com tudo o que acontecera, a perda era um fardo demasiado pesado, e que os atormentava, mas era algo que ainda não se tinham permitido sentir verdadeiramente. Ainda lutavam pelas suas vidas, apenas divergiam na forma de o alcançar.
“Nunca te vou odiar, pai…” Diz Astrid tremendo o queixo, lutando agora com todas as forças para conter a sua crescente dor e medo, no dique interior que erguera para se manter sã. Receando que ele desabe, Astrid vira as costas ao pai e, em passos lentos, deixa-o para trás. Sente-o debatendo-se por encontrar algo mais para dizer… e a desistir, por fim.
A rapariga sai da cabana, que partilha com o pai, para o acampamento já escurecido, onde as habituais fogueiras acolhedoras convidam qualquer um a sentar-se um pouco. Contudo a tempestade de emoções que rugia dentro do seu peito, pedia aos seus pés que andasse.
Ela sabia o que tinha a fazer. O seu pai não acreditava em si, mas Astrid sentia que não existia outra alternativa. Mais do que uma certeza, uma urgência permanente no seu peito arrancava-a, a todo o instante, do momento presente. Desde a sua visão diante dos filhos de Makoto, Kana e Riru, ela sabia o que deveria fazer: seguir aquele mapa confiado à sua mente, mais ninguém o podia fazer. Apesar de não saber no que consistia a sua tarefa, sabia que era a chave para acabar com esta doença maldita que lhe tinha roubado a mãe, o avô e tudo que tinha sido o seu mundo em tempos.
Algum tempo depois, dá por si sentada num tronco um pouco afastada do seu acampamento. Sabia que o seu pai ficaria preocupado se ela se afastasse mais do que a distância a que os sentinelas não a conseguissem avistar. O brilho do fogo distante trazia-lhe memórias antigas... as memórias das festas na tribo, no final do verão, as festas em que se agradece aos pastores e à floresta pelas dádivas de sustento que se recolhe em preparação para o inverno, mas também lhe trazia a triste incerteza de algum dia tornarem a fazê-lo.
É envolta pelo nevoeiro dos seus pensamentos que um leve tresmalhar nas folhas lhe chama a atenção. De imediato, roda sobre si mesma puxando a faca comprida da bainha, que estava - sempre - à sua cintura. No escuro da noite, reconhece a forma de um javali e os seus olhos escuros refletiam agora, não apenas a luz da noite mas a surpresa do seu rosto.
“Calma! Vim para falar contigo… estava aqui já há algum tempo. Tinha a esperança que precisasses, tanto quanto eu, de algum tempo para ti.” A voz da jovem javali saía baixa, tanto pela necessidade de manter segredo como pela incerteza que a dilacerava.
“Assustaste-me, só isso.” diz Astrid devolvendo a faca à bainha, deixando a Kana o espaço para dizer o que pretendia. Nessa manhã, depois da sua visão, Kana tinha argumentado fortemente que era o pai dela que falava por Astrid, e havia sido a única que acreditara em si. Embora Astrid não fosse capaz de saber se a voz quente que falara por ela era mesmo o falecido pai de Kana, essa era uma revelação que contemplava agora com assombro.
“O meu pai… era a voz dele quando falaste, tenho a certeza! Sabes se… sabes se ele está bem?” pergunta-lhe Kana, a custo, com ansiedade e dor espelhados nos seus olhos negros. Astrid sente-se tola, claro que Kana iria querer saber do seu pai. Afinal, também ela tinha tentado, por várias vezes, encontrar a sua mãe no marasmo de sussurros que a assombram, no entanto jamais tinha sido bem-sucedida. Até hoje, jamais tinha sido capaz de controlar a sua magia.
“Eu... as vozes vêm até mim quando querem e não me dão explicações. O meu avô também tinha esta magia, mas não conseguiu treinar-me antes de…" Astrid sente um nó no peito ao relembrar o seu avô, contudo, Kana, apesar de sentir a mesma dor que ela, não consegue esconder a desilusão, baixando o rosto.
“Lamento… A minha mãe contou-nos sobre a doença que fez a todos ficar loucos e atacar indiscriminadamente quem estivesse por perto. Não consigo imaginar o quão assustador isso tenha sido…”Diz Kana tentando agora empatizar com Astrid, falando de forma franca e ignorando as memórias que suscitam nela. Essas memórias, ainda tão presentes, surgem de repente em primeiro plano na sua mente. As perseguições, a lembrança da raiva nos olhos da sua mãe... tudo isso se reflete agora no seu corpo, fazendo-a tremer, o que não passa despercebido à jovem javali.
“Desculpa, não queria…”
“Eu sei… Foi terrível… A raiva, eles têm tanta raiva. Ao princípio, perguntas-te - porque é que ela está assim, será que fiz alguma coisa? - depois percebes que algo está errado, mas aí já é tarde demais, nessa altura já nada há a fazer.” responde Astrid falando mais para si do que para Kana - “depois alguém teve a brilhante ideia de fazer fogos para tentar conter a doença… nos últimos dias, o ar estava carregado de fumo de carne queimada… tão forte que o sentes em ti por mais que te laves, está-te no paladar por mais água que bebas. Ainda consigo senti-lo…” Astrid termina com o seu olhar baço focando longe, vê algo para lá da folhagem obscurecida, para lá da javali diante de si... Astrid vê o passado.
“Astrid… Astrid!” vocifera Kana, mais alto pela segunda vez arrancando-a do transe que a dominava e trazendo-a de volta ao momento presente. Astrid regressa com o medo pintado no rosto sob a pálida luz nocturna.
“Esse destino será o nosso destino em breve, certo?” Pergunta Kana determinada. Astrid, esforçando-se para reter as lágrimas atrás das pálpebras, consegue apenas anuir. “O meu pai disse que só tu podias parar esta maldição e que nós tínhamos de te ajudar! Sabes o que fazer?” Pergunta Kana muito directa. Astrid já começara a compreender que era característico da javali, esta forma directa e determinada de ser.
“Quando a voz quente falou por mim eu estava cá… mas depois vi-me a ser puxada para longe… como se… como se me estivessem a mostrar um caminho. E antes de ver o fim, vi-me outra vez no meio das chamas e, e… o meu pai…” Astrid esforça-se para que as palavras saiam mas a angústia de o perder também amarra-lhe as palavras à garganta. Kana dá dois passos na sua direção, fitando-a resoluta.
“Acreditas que a solução para isto tudo está no fim desse caminho?” Pergunta Kana sem dúvida na sua voz. Nesse mesmo instante, Astrid sente algo muito maior por detrás daquela pergunta. Um nó de destino, e isso assusta-a, mas ela não tem outras palavras e as próximas saem-lhe quase como se fosse uma mera espectadora.
“Sim, sinto-o tão verdade como o sol que amanhece ou a terra sob os nossos pés.” Responde Astrid ganhando alento na única certeza que tinha em si, desde há muito tempo.
“Eu sei que era a voz do meu pai e ele não me mentiria! Farei tudo o que estiver ao meu alcance para te ajudar e, o que não estiver, torná-lo-ei!” Promete Kana sem que em nenhuma palavra reste uma sombra de dúvida. A pressão no peito de Astrid solta-se, e ela sabe, dali a diante, o seu destino e de Kana estariam ligados para sempre.
A outrora densa miríade de árvores e arvoredos começa a dispersar-se mais e mais, as familiares espécies de pinheiros mansos, freixos e carvalhos, começam a fazer-se tímidos, abrindo cada vez mais e mais espaço para os campos de ervas altas que se estendem diante da linha de javalis acompanhados por uma raposa. Destemidos, avançam resolutos passo a passo. Um passo sem hesitação, não apenas porque acreditam, mas porque sabem e confiam nos seus corações. Mais resolutos que quaisquer outros, estão Makoto e Keppler. Os amigos de longa data não tinham dúvidas da perigosidade da sua missão, sentiam um desconforto preocupante, mas não era medo, era antes um instinto que só aqueles que já tiveram as suas vidas em perigo desenvolvem.
“Sinto-me... sinto-me como quando apareceu a Ursa louca." Keppler quebra o silêncio recordando o dia em que os dois amigos enfrentaram um dos seus maiores desafios. A recordação dos olhos de Biachi ainda hoje a atormentava.
“Sim, também o sinto. Embora não seja propriamente o que desejava estar a pensar neste momento…” Diz Makoto soltando uma pequena gargalhada. “Ela quase que te partiu em dois!” - Keppler mexe instintivamente a pata esquerda da frente, como se o seu corpo tivesse recordado a velha ferida.
“Eu ainda me esquivei um pouco, mas não o suficiente…” defende-se Keppler, assemelhando-se à jovem raposa que outrora fora, levando a sua amiga a sorrir.
“Foste, em igual medida, corajoso e tolo! E se não te tivesses lançado sobre ela, eu não estaria cá hoje…” Os amigos trocam uma gargalhada franca, aligeirando a tensão sorrateira que se havia abatido sobre eles. Então, o sol da tarde começa a ganhar uma tonalidade mais escura, mudando completamente a atmosfera do dia. Baixando, cria no chão grandes sombras negras que distorcem o tamanho e as formas da companhia, enquanto começam a subir uma pequena ladeira.
Quando alcançam o topo do pequeno declive, o enorme campo de ervas altas surge diante deles impressionando o grupo com o seu colossal tamanho e esplendor. A cada leve toque da brisa de final de tarde todas as ervas se movem, como que encantadas. Na sua dança orquestrada, refletem o brilho do sol poente, capturando o coração de todos naquele exacto momento.
“Uma linda visão serve bem como ponto para a despedida.” anuncia Kuro, em tom agradável, empurrando a sua inquietação para longe e deixando quem o rodeia mais disposto à tarefa indesejada, contudo vital. Makoto conhecia-o bem demais para não o notar, mas, como líder da outra metade da companhia, segue-lhe a deixa.
“Será breve, estaremos juntos dentro de pouco tempo!” Diz ela, angariando toda a sua confiança. O grupo descontrai um pouco a disposição, trocando palavras de incentivo e despedidas entre si. Viam-se como uma família, sentiam-se mais seguros juntos, mas as circunstâncias forçavam a separação deixando um gosto amargo.
Keppler, absorto, foca o horizonte de um lado para outro, algo se debatia dentro de si. Makoto reconhece aquele tique, uma ideia estava prestes a nascer na sua mente ágil, tal qual ele. “O que pensas?” pergunta a amiga aproximando-se para que fiquem lado a lado.
“A inclinação daqui até ao mar de ervas altas é maior do que me lembrava… e para noroeste também!” Começa Keppler animado, não dizendo logo aquilo que de facto pretendia, como gostava de fazer sempre que tinha uma ideia que considerava genial.
“Sim, é verdade, acho que nunca tinha vindo até aqui…”
“Kuro! Vem cá por favor!” Chama Keppler, antes que Makoto consiga terminar, tal já é o estado de entusiasmo. Kuro, intrigado pela urgência no chamamento da raposa, aproxima-se rapidamente para perto de ambos.
“Já viste este declive daqui até às ervas altas? E de nordeste para noroeste, a inclinação também é acentuada.” Começa Keppler, prontamente, escondendo para si, ainda, a sua ideia.
“Sim, sim, é por isso que acaba por se reter tanta humidade aqui e permitir este campo tão grande, de ervas altas.” Responde-lhe Kuro, constatando o óbvio e sem entender o que tinha de tão especial, esse facto, e que pudesse levantar tanta emoção em Keppler.
“Tens toda a razão! Mas... sabes o que temos um pouco mais para nordeste daqui?... O rio!” revela finalmente, triunfante. Makoto e Kuro entendem agora a ideia da raposa. Ligando a vala ao rio a água desceria pelo declive natural do terreno, transformando-a num fosso com água, uma armadilha mortífera. Seria um obstáculo bem mais difícil de transpor do que a ideia inicial da vala. Os javalis olham-se surpresos entre si, as suas mentes debatendo as implicações desta alteração ao plano inicial.
“Desviar o curso de um rio… isso tem muitas implicações, não parece que seja uma decisão para apenas nós tomarmos.” Kuro, sempre cauteloso, relembra como as leis da floresta e das antigas tradições passadas pelos pastores, funcionam.
“Percebo o que queres dizer mas o tempo urge! Será que dispomos do tempo de voltar para trás para colocar a questão ao conselho?” Contrapõe Makoto, assumindo a posição do amigo. A política do concelho iria trazer mais um atraso, um que ela sentia não poderem dar-se ao luxo de ter.
"A água nem precisa de estar sempre a correr, aliás, até é melhor que não esteja! Se passar apenas um pouco de vez em quando, criamos um lamaçal que é bem mais difícil de atravessar do que um curso de água!” Keppler termina, revelando a parte mais importante do seu plano com um sorriso matreiro no rosto, conseguindo surpreender Makoto embora ela o conhecesse tão bem.
“Mesmo assim, haverá repercussões…." Volta a reiterar o javali, deixando as palavras no ar enquanto a sua mente ainda se debate. “Contudo, é um plano demasiado bom para o abandonarmos." Termina Kuro, esboçando o seu meio sorriso, tão característico em si.
“Estou preparado para assumir essa responsabilidade!” Anuncia Keppler sem se preocupar muito com o futuro, como sempre.
“Mas não o farás sozinho…” Assegura Makoto, ao que Kuro apenas acena, transmitindo a sua concordância para com a afirmação da javali.
Com o plano traçado e de entusiasmo renovado, os amigos despedem-se calorosamente. Agora com um pouco mais de esperança nos corações.
Imagem criada pelo Nitghcafe AI (https://creator.nightcafe.studio/) apartir de uma foto capturada por mim.
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