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Revelação Lunar - Parte III

  • Foto do escritor: Búzio o Bardo
    Búzio o Bardo
  • 28 de set. de 2021
  • 11 min de leitura

Atualizado: 2 de ago. de 2022


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O caminho de volta tinha sido obscurecido, tanto pelo diminuir da luz quanto pelo peso nos seus corações. Makoto sabia que a ferida da perda do seu companheiro ainda estava bem presente em si, e nos seus filhos, mas este episódio tinha demonstrado que era muito mais do que isso. Os seus filhos vinham, um de cada lado, colocando a mãe entre si, demonstrando a divisão que se revelara entre eles, dilacerando-a completamente. O silêncio não se quebrou nem uma vez no regresso ao seu território. Depois de deixarem os humanos, Makoto imaginou dezenas de cenários mas, em todos eles, a ferida tornava-se cada vez mais profunda. O seu coração nunca fora capaz de conceber as palavras para solucionar esta mágoa, porque seria diferente agora? Resignou-se, ela também, ao silêncio. Sentia-se derrotada e falhada no seu papel de mãe. Keppler seguiu-lhe o exemplo, por várias vezes lhe tinha dirigido um olhar incentivante, procurando dar-lhe coragem mas acabando por desistir, no fundo, sentia que não era isso que Makoto desejava.


Quando chegam, finalmente, ao território da sua tribo, um sentinela vem prontamente ter com Makoto informando-a que Boro a espera. Dada a natureza da sua missão, não a surpreende.


“Vão ter com o resto da tribo." - ordena, em tom firme, a javali aos seus filhos.

"Mas... eu também quero ir! Devíamos ser nós a contar-lhe! Boro devia ouvir o que tenho para lhe dizer!" - contesta Kana, destemida e crente, na importância da informação que tem.


"Sei bem o que tens para dizer, posso muito bem ser eu a fazê-lo." - declara a mãe à sua filha, tentando dissuadi-la de continuar o seu argumento.


"Mas tu não acreditas em mim!" - responde Kana, tentando conter a frustração na sua voz e enviando, de soslaio, um olhar acusador ao irmão. Este, sentindo-o, desvia os olhos tristes para o chão.


"Acredito, filha, mas não é só uma questão de acreditar ou não acreditar, podes ter sido enganada." - explica, Makoto, uma vez mais, ainda que sabendo o quanto esta ideia magoa a sua filha.


"Não! Tu é que foste enganada! Riru e Garth é que estão a mentir, eu sei que era a voz do pai que falava através da Astrid!" - Kana explode novamente, as lágrimas surgem nos seus olhos injustiçados.


"Kana! Não admito que insultes a integridade do teu irmão e de Garth!" - a jovem mãe repreende com dureza a explosão da sua filha. Kana, sentindo-se encurralada, corre num choro baixo, deixando todos para trás. Riru mantem os olhos no chão, suspirando de tristeza as palavras da irmã.


"Eu… desculpa mãe..." - esforça-se Riru atravessando a tristeza.


Makoto encosta o rosto ao seu filho, consolando-o - "Não tens de pedir desculpa filho." - sussurra-lhe.


Por breves momentos, Riru responde ao carinho da mãe. Acabando por partir, cabisbaixo, pouco depois.


"Queres tentar falar com eles outra vez?" - pergunta Keppler, preocupado, dando abertura à sua amiga por saber como encara ela o seu dever.


"Neste momento, julgo que faria mais mal do que bem." Consegue dizer Makoto, resignada, com a voz a falhar-lhe.


Os amigos, sem saber mais o que dizer, decidem iniciar a marcha até Boro. Acompanhando o sentinela, fazem caminho por entre os arbustos escurecidos pela luz fugaz. Ninguém quebra o silêncio doloroso, entregam-se à cadência monótona dos passos até ao local onde se encontra Boro.


Numa abertura entre as árvores, que nem se pode chamar de clareira, Boro encontra-se deitado à frente das três pedras antigas, olhando o céu. As três pedras, arrastadas há gerações pelos primeiros membros da sua tribo simbolizavam a conquista daquele território, do compromisso de todos de permanecerem ali e, acima de tudo, o pacto de serem todos uma família. Boro perscrutava o manto escuro da noite, adornado de pontos prateados, buscando sabedoria para enfrentar os desafios que o esperam.

"Ah Makoto, finalmente chegaste, esperava-te ansioso." - o velho javali revela um estado de espírito pouco típico seu.


"Desculpa, Boro, houve um... pequeno incidente, daí o nosso atraso..." - principia a javali, sem saber muito bem por onde começar, com tudo o que acontecera. Keppler, sentindo a indecisão da amiga, toma a dianteira.


"Garth está determinado a recusar a nossa oferta. Não faço ideia pelo que eles passaram, mas está completamente aterrorizado pela doença. Para ele, a única solução é fugir." - diz a raposa jovial em tom grave, um tom muito contrário ao seu habitual.


"Temia que fosse o caso, mas tínhamos que tentar… seria uma grande vantagem se a tribo dos humanos, com experiência a combater a doença, estivesse ao nosso lado." responde Boro desiludido, fitando o chão.


"É lamentável… Garth continua a avisar: todos os que comem vegetação devem ter atenção se há algum cadáver por perto e, quanto aos carnívoros, para terem muita atenção ao comportamento das suas presas. Em caso de qualquer desconfiança fazer uso do fogo para queimar os cadáveres e toda a área envolvente." - intervém Makoto, a informação é conhecida, mas Garth repete-a insistentemente levando-a a fazê-lo também. "Quanto à nossa missão, ele acha boa ideia mas, contudo, reforça que apenas servirá para atrasar o inevitável. O que me leva a sugerir que deveríamos começar a usar, regularmente, o nosso equipamento de guardiões, a partir de agora." - arrisca a javali, terminando com uma sugestão controversa, recebendo, em troca, um olhar desconfortável de Boro.


"O equipamento de guardião só pode ser usado quando todas as tribos decidirem unanimemente evocar a lei de proteção da floresta. Há uma razão para essa lei, Makoto." - replica Boro, opondo-se firme, mas calmamente, à ideia da sua guardiã.


"Boro, temos uma comunidade forte e bem diferente da dos contos antigos, onde em guerras dentro de florestas se utilizava o equipamento sagrado como arma para quebrar a ordem natural." - prossegue Keppler, defendendo a posição da amiga. Também ele persuadido pelas histórias de Garth.


"Garth diz-nos que um arranhão apenas, de um animal infectado, é o suficiente para passar a doença. O nosso plano de criar um fosso nas terras abertas, para além da nossa fronteira, a noroeste, deixa-nos demasiado expostos!" - retorque Makoto, preocupada, sentindo o peso de enfrentar esta ameaça, desprotegida, e receando o que a sua morte significaria para os seus filhos.


"Eu não posso tomar esta decisão por mim. Amanhã irei pessoalmente falar com o Cristóvão, talvez haja um precedente nas histórias antigas. Contudo, nós temos de avançar com o nosso plano, todos os outros guardiões javalis avançarão para os seus postos amanhã, tal como havíamos combinado. Makoto, nós somos uma família, ninguém te culpará se não quiseres ir mas, lembra-te, os teus filhos são os meus filhos e filhos da tribo também, aconteça o que acontecer." Boro abre a possibilidade à jovem mãe de ficar de fora desta missão perigosa, relembrando-lhe, ainda assim, dos fortes laços da sua tribo.


"Não faltarei com os meus deveres de guardiã, sei que todos cuidarão dos meus filhos se o pior acontecer." responde Makoto, com gratidão pelas palavras do velho javali, sem deixar de sentir um aperto no peito.


“... há mais uma coisa; Astrid, a filha de Garth, parece ter a magia da terra. Ela falou com Kana e Riru e, a minha filha, jura que era a voz do pai, mas Riru disse que não tinha a certeza. Garth revelou-nos que o seu pai era o shamã da sua tribo, mas que pouco ensinou a Astrid e, depois, tudo aconteceu. Ele garante que quem falou através dela fora um espírito negro, devido à inexperiência da filha, como é sabido que acontece nestes casos…” Makoto deixa a frase no ar, apercebendo-se da astúcia que parece correr pelo rosto grave de Boro. Ele não ia deixar esta informação passar assim.


“A ser verdade… é imperativo ensinar a rapariga! O que disse ela?” pergunta Boro sem rodeios.


“Segundo Kana, a voz que soava como Keicho, disse que havia uma forma de parar a doença e de nos salvarmos mas, antes que ele terminasse, a rapariga desmaiou.”


“O que é que tu achas? Terá sido o teu companheiro? Um espírito que deixa uma família jovem... é bem possível.” - Boro prossegue com a curiosidade a suplantar o tacto.


“Kana é muito emotiva, mas Riru é muito inseguro, por isso é difícil avaliar.” - diz a jovem mãe, revelando o dilema que a acompanha desde do incidente.


“Mais uma coisa a discutir com o Cristóvão…” - termina Boro, com a mente cheia de planos face à nova informação.


Após acertarem os últimos pormenores acerca da criação do fosso - como forma de barrar a passagem a animais terrestres possivelmente contaminados - Makoto e Keppler despedem-se do velho javali. Este, concedendo-lhes a sua benção, não consegue esconder na voz o pesar pelo que estavam prestes a enfrentar.


Os passos de volta ao abrigo, alongam-se com o peso do seu espírito devorado por dúvidas. Agora ela conhecia bem a divisão entre os dois filhos, os acontecimentos que levaram à morte do seu companheiro tinham deixado uma ferida aberta, que infectou entre os dois. Uma ferida que, para bem de ambos, ela tinha que sarar. A sua partida para a missão, no dia seguinte, colocaria ainda mais pressão sobre os filhos. Restava-lhe apenas confiar no futuro incerto e em tudo o que lhes havia ensinado até hoje, caso o pior acontecesse. Com o coração pesado tenta afastar o auguro. Sem sucesso.



O sussurro inegável tinha-o deixado em paz. A presença constante na sua mente infectara-o assim que a podridão da doença se espalhara. Quando entendeu verdadeiramente que a doença era muito mais do que uma praga letal, já era tarde demais, já estava subjugado à vontade do sussurro. Anteriormente, aos seus olhos, e de todos na sua floresta, os infectados tornavam-se criaturas despojadas de mente, em frenesim errático, atacando todos ao seu redor até perecerem por si ou serem destruídos, mas isso era apenas o engano do sussurro. Ele obrigava a esse comportamento, talvez para garantir a propagação do seu domínio, suspeitava Einar.

A sua floresta tinha caído, apesar da luta e do esforço de todos, tinham perdido. Na verdade, quando se aperceberam, provavelmente já era tarde demais… assim como o era para ele. O seu fim estava próximo, o corpo doía por toda a parte e, por dentro, a doença queimava-o. Entre as raízes de um carvalho antigo, Einar aninhava-se junto à terra, de olhos fechados, com a dor e o medo como única companhia. O coelho de meia-idade tinha estado sempre consciente do que fazia, mesmo quando privado de exercer a sua vontade no próprio corpo. Horrorizado tinha assistido, assim, à perseguição de amigos próximos e de conhecidos. Tinha perdido o contacto com a sua família e, quando recuperou a vontade, depois da queda da floresta, tentara sem sucesso encontrar a sua companheira, que esperava os seus filhos.


"Eu não te abandonei… o que se passou foi um mal terrível, ninguém deveria sofrer assim…" O sussurro regressa, com doçura na voz, a mesma doçura que tinha dobrado a sua vontade, obrigando-o a perseguir e a espalhar a doença com dentadas fundas.


"Deixa-me morrer, maldito, deixa-me morrer em paz! Se sofro, é por tua culpa!" - o coelho encontra, na sua raiva, a força para responder ao sussurro na sua mente.


"Eu posso fazê-lo, se assim o desejares, mas queria que percebesses que há uma saída para a dor, há uma saída para o sofrimento. Embora te seja difícil agora acreditar, não retiro qualquer prazer em toda esta dor, não retiro qualquer prazer de ser cruel. Sou-o, porque tenho de sê-lo." diz o sussurro num lamento, carregava na sua voz um sofrimento palpável que Einar conseguia sentir em si.


"O que estás a dizer? Foste tu que fizeste isto tudo, podias ter parado a qualquer altura!" geme o coelho, confuso, por entre a dor.


"Sim, mas não seria certo que o fizesse, mereces mais do que isso. Todos merecem mais do que isto! Sei que é difícil que o vejas, para mim também o foi, mas o que faço, faço por todos." declara o sussurro, surpreendendo Einar, deixando-o ainda mais confuso.


"Destruíste tudo o que eu conhecia, destruíste o equilíbrio desta floresta... e fizeste-o por todos?! És louco!!! Deixa-me morrer em paz." diz Einar, soltando uma pequena gargalhada, afinal tudo isto havia sido desígnios de um louco, tudo perdido... para nada. Sobre as folhas do carvalho ancião, escuta o som de uns pés cansados que o chama à atenção. O seu olfacto diz-lhe que é um predador... "claro, tinha de ser uma raposa para tornar o meu fim ainda pior..."


"E tu, amavas tudo sem questionar nada? Então, diz-me, porque é que o teu coração se remexeu com a chegada da raposa?" pergunta a voz de forma maliciosa, em tom irónico, dando-lhe a entender que conhecia, de alguma forma, a sua história.


"Como é que sabes o que aconteceu à minha primeira ninhada?" pergunta-lhe o coelho apanhado de surpresa, que feitiçaria negra existiria mais naquela voz? Além de torcer a vontade era também capaz de ver o pior momento da sua vida?


"Que amor tiveste ao equilíbrio quando encontraste apenas sangue onde antes estavam os teus filhos?" - Prossegue o sussurro, ignorando a pergunta de Einar, com uma raiva contida e fervente abaixo da superfície.

“Deixa-me, eu sei que lhes falhei, tinha jurado que não ia falhar aos meus novos filhos, esforcei-me tanto, e não foi o suficiente… outra vez" revela o Coelho, rompendo num pranto.


"Não, Einar! Tu não falhaste, falharam-te a ti, falharam a todos! Este mundo mostra-te a perfeição de cada folha, da música da água a correr por entre as pedras, do calor e do toque de um ente querido, amaldiçoando-nos, com o coração e a mente, para tudo saborear em pleno, apenas para criar uma lei que todos seguem cegamente. Uns devem dar e outros tiram!" assume, agora, num volume trovejante, dentro de si.


"O que estás a dizer…" Einar súplica, sentindo uma esperança, uma promessa na voz, uma fuga a todo o sofrimento, seria isso?


"Sofri como tu sofreste, tinha tudo... apenas para ser roubado, e porquê? Porque esse era o desígnio da natureza? do equilíbrio, da lei dos Pastores? Pois eu rejeito essa lei, rejeito o equilíbrio, rejeito a natureza e rejeito este mundo! Lá fora está uma raposa enfraquecida como tu. O negro que te corre nas veias é afastado pela vontade de mudar a realidade. Vai até à raposa e recupera o que ela roubou, junta-te a mim, e eu prometo que acabaremos com este sofrimento. Não mais haverá uns que dão e outros que tiram, vem comigo e criaremos um verdadeiro equilíbrio, onde todos somos iguais!" conclui o sussurro num grito que termina como um trovão, desaparecendo tão rápido como surgiu, e deixando Einar, sozinho, a decidir: seguir a ordem natural e perecer, ou tornar-se algo mais e rompê-la...


Sentindo uma raiva inesperada dentro de si, contra tudo o que o levou até aquele momento, o coelho encontra forças para abrir os olhos. Lutando contra o negro que o queima por dentro, e por fora, arrasta-se por entre as raízes, até ao chão de folhas, onde encontra uma raposa exatamente no mesmo estado que ele. A raposa encontra-se deitada sobre o flanco, com a sua barriga a dizer-lhe que ainda respira e que apenas se encontra de olhos fechados. Aquela raposa pode nem ter sido quem matou os seus filhos, mas decerto que matou os filhos de alguém. Era assim a sua natureza, essa era a ordem natural. Os passos de Einar começam a levá-lo mesmo carregado de dúvidas, mas estas dissipavam-se a cada um deles. Porque tinha que ser assim? ele nunca tinha pensado nisso mas, agora que alguém lho tinha mostrado, fazia todo o sentido.


"Também o estavas a ouvir?" a voz da raposa sai rouca e fraca. Ao escutá-la, o instinto de Einar toma-o imediatamente, congelando os seus passos.

"Sim…" consegue apenas dizer.


"O maldito tentou confundir-me, insultando todas as nossas crenças." prossegue a custo, mostrando qual das escolhas tinha feito. "Já não nos resta muito tempo, deita-te aqui junto a mim. Entremos no próximo mundo juntos, os Pastores hão de nos guiar aos nossos antepassados." A raposa convida-o com bondade no tom sumido. Einar olha-a com piedade por um momento, vendo-a tão frágil e assustada quanto ele. Afinal, não eram assim tão diferentes. A dúvida consome-o por completo. Deixa-se cair sobre as suas patas, com lágrimas correndo-lhe dos olhos em desespero.


"Porque tinha tudo de acontecer assim?" pergunta desesperado para ninguém, mas é a raposa que lhe responde.


"Era o que nos esperava… espero que a minha família tenha conseguido escapar." responde a raposa em prece, sem saber que selava o seu destino e o de Einar para sempre.


"Também já tive uma família e, por duas vezes, fomos presas deste equilíbrio podre!", consumido pelo ódio, Einar salta sobre a garganta da raposa com uma força incrível que ele desconhecia dentro de si. O negro, que antes o roubava, agora alimentava-o e dava-lhe um poder ao qual a raposa, surpreendida e fraca, era incapaz de resistir. A cada dentada que retira, a sua força cresce e o seu corpo contorce-se e altera-se. Os seus músculos crescem e os seus ossos ganham volume, transformando-o muito além do seu pequeno tamanho. O seu pêlo cinzento ganha tonalidades pretas e vermelhas e o seu maxilar projeta-se para a frente e ganha mandíbulas poderosas que, por fim, roubam a vida à raposa.


"Bem-vindo irmão, bem-vindo aos amaldiçoados, juntos criaremos o verdadeiro equilíbrio!"


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