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Revelação Lunar - Parte I

  • Foto do escritor: Búzio o Bardo
    Búzio o Bardo
  • 6 de jan. de 2021
  • 8 min de leitura

Atualizado: 2 de ago. de 2022




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Do chão, ligeiramente remexido de folhas mortas e terra, emanava uma ténue fragrância que, mais uma vez, não escapa ao seu poderoso olfato. Para um javali, o olfato é o seu maior orgulho e, Makoto, orgulha-se muito do seu. O distinto cheiro da raiz doce já lhe faz abrir o apetite, ela sabe que está por perto de uma das iguarias mais apreciadas pelo seu povo. Escavando com o seu focinho, vai atravessando as várias camadas de terra até ao tesouro que a sua mandíbula liberta com dois puxões fortes. A sua movimentação não passa despercebida aos seus dois filhos, Kana e Riru. Curiosos, como todas as crias são, imediatamente se juntam a ela, expectantes com o que teria encontrado.


"O que encontraste?" pergunta a destemida Kana, ainda antes de chegar. Riru, mais tímido, pára dois passos antes da irmã.


"Raiz real!" diz, sorrindo para os pequenos, antes de lhes lançar o petisco que estes

devoram avidamente.


"Vocês já tinham aqui estado... não sentiram nada?" indaga a mãe com suavidade.


"Eu não estive aí, foi o Riru que esteve." responde Kana prontamente. O irmão, mais tímido, desvia os olhos para o chão de embaraçado, não querendo enfrentar a irmã.


“A tua mãe consegue sentir uma raiz dentro da terra, achas que ela não sabe que lá

estiveram os dois?” ouve-se a raposa Keppler repreender Kana, em tom amigável, apanhando a jovem javali de surpresa. Contudo, o embaraço, dura apenas o pequeno momento de encontrar resposta.


“... mas Riru é que mexeu na terra eu não!” defende-se prontamente, deixando o seu irmão tristonho.


"Tenham calma, não é preciso tanto. Kana, é difícil sentir a raiz real, se fores mais paciente a inalar apanhas mais variações nas fragrâncias. Lembras-te como a mãe faz? inspirando bem fundo? E Riru, não fiques triste, tu sentiste a raiz, alegra-te! Quando acreditares que tens algo, prossegue até que sintas o contrário." A jovem mãe tenta guiar os seus filhos a ultrapassarem os seus maiores obstáculos. Kana é demasiado intrépida para o seu bem, em oposição à timidez de Riru que o impede de florescer.


"Pareceu-me que era, mas... depois escavei um pouco e já não sentia o cheiro, então desisti..." diz Riru meio aborrecido consigo. O seu olfato é tão bom, ou até melhor, que o de Makoto, mas ele tem tão pouca confiança em si, que raras são as vezes em que acredita no que sente. Makoto sente a angústia do seu filho crescer, ciente da razão da sua falta de confiança, mas o passado não se altera apenas por desejo.


Antes que o momento se torne em algo maior, Keppler, o seu velho amigo que se encontrava deitado, salta da sombra para puxar o rabo de Riru, uma brincadeira frequente entre ele e os filhos de Makoto, que resulta sempre em perseguições incansáveis e gargalhadas constantes. O puxão é de tal forma forte que faz os irmãos colidirem e caírem sobre as patas traseiras, o que os instiga em corrida atrás da raposa, trazendo as gargalhadas e os ânimos para cima. Makoto sorri aliviada, uma vez mais agradecida ao seu amigo de infância, um verdadeiro herói desde a passagem inesperada do seu companheiro. Especialmente devido a como tudo aconteceu.

Infelizmente, essa harmonia não estava destinada a continuar nesse final de manhã. O vento, tão inconstante como o próprio destino, muda trazendo com ele um ligeiro odor, como forma de advertência, prenúncio de algo terrível.

Makoto é a primeira a senti-lo, estremecendo imediatamente. Momentos depois também os restantes o sentem e a tensão espalha-se. Os pequenos, receosos, vêm pé-ante-pé esconder-se atrás da mãe. Keppler, furtivo, surge ao lado de Makoto e observam ambos o verde indistinto que não traz respostas a nenhum.


“Parece uma doença velha, e…”


“Pânico…” termina, Makoto, o que seu amigo procurava dizer. O pêlo da nuca dos pequenos eriça-se mais, algo que não passa despercebido à sua mãe.

“Meus queridos, Boro encontra-se apenas a umas passadas para sueste daqui, lembram-se? Sim? Vão ter com ele e digam-lhe que deve vir ter comigo e com Keppler. Chamamento de guardiã. Conseguem fazer isso à mãe?” Kana enche o peito sentindo a responsabilidade, o que traz a sensação desta ter crescido mais dois centímetros. Riru permanece bastante nervoso mas, assim que a irmã se vira para partir, não querendo deixá-la só, prontifica-se a acompanhá-la, demonstrando a coragem escondida que existe no seu coração bondoso.


A mãe, zelosa, vê os seus filhotes desaparecerem por entre os arbustos com um nó no peito, contudo conhece bem a sua obrigação. Nada de bom está na origem daquele odor e, Makoto e Keppler, ambos guardiões da floresta, têm de o verificar. Devem-no pelo bem de todos.

"Avançamos?" pergunta Keppler, destemido, cerrando a sua determinação. Alimentando também o espírito de Makoto.

"Sim, juntos."

"Como sempre!" asseguram-se mutuamente e, sem demora, avançam lutando contra os seus próprios instintos, mergulhando no verde.


O silêncio das aves não lhes passa despercebido durante o seu avanço, também elas haviam sentido o distúrbio que se abatera sobre a floresta. Teria alguma delas avisado

outros guardiões? Habitualmente seria essa a sua função e, se assim fosse, outros estariam a convergir para aquele local. Esta assunção leva os amigos a descontrair um pouco... mas não muito.


Progredindo por entre as sombras, ruídos abafados de vozes assombram-nos, voltando a erguer a tensão. A tentativa de permanecerem escondidos faz atrasar o seu passo cauteloso. Estava uma manhã solarenga de final verão e eles estavam próximos da fonte daquele odor perturbador.


Ao atravessarem a pequena clareira de erva alta, escutam, no seu limiar, os sons distantes tornar-se vozes perceptíveis, vozes que trocam ordens entre si aparentando preparar algo. O número de vozes não parece ser superior a dez elementos e, agora, o cheiro que antes se encontrava abafado pelo odor pestilento, revela-se inequivocamente como sendo de uma tribo de humanos. Facto só por si estranho, dado existir um entendimento com os humanos a norte, de onde estes aparentam originar. Este entendimento nunca havia sido quebrado, até então... levando os dois amigos a questionar a causa desta alteração, bem como se estaria ligada ao estranho odor. Teria havido alguma disputa de território que os obrigara a partir, trazendo-os até aqui? Se assim fosse, como iriam conviver todos na floresta? Teriam que chegar a um acordo, o equilíbrio não seria fácil de encontrar entre todas as tribos. Além disso, não existe nenhuma regra que os impeça de se fixarem na floresta. Teria de ser discutido e todos teriam de concordar, a mudança seria um grande desafio.


Arrastando-se a custo, junto ao solo, debaixo de um silvado cerrado, chegam a um abrigo, por entre as folhas, onde conseguem uma boa visão para o acampamento. Apesar de estarem preparados para uma tribo bastante desgastada de uma provável fuga, nada os preparara para o que encontraram. Os olhos mortiços conferem ao grupo um aspecto fantasmagórico, como se fossem uma tribo outrora perecida e apenas os seus espíritos perdidos vagueassem por ali. A julgar pela sua ausência, os anciões pareciam ter sido deixados para trás, e isso chocou-os por ir contra tudo aquilo em que acreditavam.


Todos os que ali estavam eram jovens e fortes, mas o seu caminhar sem energia e o pânico escondido por trás dos seus rostos gélidos, diziam o contrário. As suas roupas de grande volume, feitas de pele de animais que teriam capturado no passado, caem sobre os seus corpos debilitados de forma desajustada, evidenciando uma grande provação de fome e violência - a julgar pelos vários feridos e pelo cheiro a sangue e infecção que se espalhava por todo o lado. Contudo, mesmo ali, o odor prevalecente que tanto os tinha assustado era algo indistinguível.

O que quer que fosse assemelhava-se a morte inegável. Agora, tão perto da origem, o instinto de sobrevivência dos amigos gritava por fuga mas, a coragem daqueles que são guardiões é mais forte, aguçando a mente de ambos, fazendo-os beber todos os sinais que os humanos evidenciam, tentando captar se seriam hostis, como o são alguns animais quando se encontram debilitados desta forma...


Quando o leve resmalhar das ervas anuncia a chegada de Boro e dos irmãos Kato e Kuro, já Makoto, com o seu olfato apurado, e Keppler os haviam sentido na distância. Kato e Kuro são dois dos elementos mais distintos da sua tribo. Kato, mais robusto e temerário, e Kuro que pouco perde para o irmão que o ultrapassa apenas por ser o mais sagaz. O que faz dele o principal rival de Makoto à liderança da sua tribo, no dia em que Boro abdique da posição.


"O que acham deles? Devemos apresentar-nos antes da chegada dos restantes guardiões?" diz Boro, num sussurro e sem rodeios, revelando a mesma preocupação que tanto Makoto, quanto Keppler, tinham. A maior preocupação, presente em qualquer situação que se assemelhe, é sempre a chegada do líder dos lobos. Robert era o jovem líder que assumira a liderança da sua tribo há apenas dois anos e que já se demonstrara difícil de lidar. Intempestivo e rápido a tomar decisões, muitas foram as vezes que tornara as situações complicadas para todos, especialmente por ter a tribo mais poderosa da floresta, os perdadores no topo da cadeia alimentar. Ninguém iria querer Robert a tomar iniciativa de negociar com os humanos numa situação destas, poderia revelar-se completamente desastroso.


"Tanto eu como Keppler achamos que eles estão mais esgotados e famintos do que outra coisa. Muitos estão feridos e não os vejo com vontade de atacar ninguém, especialmente com os nossos números. Como estamos, parece-me podermos apresentar-nos sem aparentar ser uma ameaça e sem estarmos demasiado vulneráveis." reporta Makoto ao seu líder, de forma pragmática. Boro, por sua vez, olha de relance para Kuro que lhe devolve um aceno com a cabeça, demonstrando concordar com a apreciação de Makoto.


Não arriscando mais barulho, Boro inclina a cabeça fazendo sinal de retroceder para que saíssem daquele esconderijo no silvado, que se encontra muito perto da tribo humana. Todos o circundam, sem cerimónias, tornando a sua chegada num momento bem audível e anunciando-a propositadamente. Quando se avistam, os javalis e a raposa constatam que da tribo dos humanos têm, diante de si, quatro dos seus mais fortes e capazes segurando as suas lanças, junto do corpo, em demonstração da sua força mas, ainda assim, sem mostrar qualquer agressividade.


"Paz para todos nesta tarde! Sou Boro, o líder da tribo dos javalis, faço-me acompanhar pelos guardiões Makoto, Kuro e Kato, da minha tribo, e Keppler guardião da tribo das raposas e um velho amigo nosso." Saúda Boro, apresentando a todos com a sua voz grave e forte, sem se transparecer autoritário. Esta sua habilidade calorosa frequentemente lhe resolvia problemas sérios devido à sua disposição amigável. Este, foi apenas mais um exemplo disso, a julgar pelo ligeiro relaxar na disposição dos humanos, após as suas palavras, o que tornou toda esta situação menos tensa.


"Paz à tribo dos javalis e das raposas desta floresta! O meu nome é Garth, os que vêem aqui são o que resta da minha tribo que existia a norte daqui. Os nossos ancestrais tinham um pacto de troca e passagem que, com o tempo, se tornou uma memória. Venho, nesta altura de muita angústia e desespero para o meu povo, suplicar que possamos estar diante do conselho de líderes desta floresta para o invocar uma vez mais." Diz um dos humanos que estava mais ao centro, em tom claro e respeitoso, dizendo as palavras antigas na perfeição e deixando o grupo cada vez menos tenso.


"Lamentamos a vossa perda, é com tristeza que recebemos essas notícias e asseguro que a tribo dos javalis respeitará o pacto antigo. Outros guardiões convergem para cá, a vossa vinda é feita de uma forma pouco ortodoxa, segundo os costumes antigos. Deveriam ter-se feito anunciar primeiro. Contudo, prevejo que esse incomprimento se deve à razão pela qual tiveram de abandonar o vosso território, estou certo?" responde Boro, respeitoso, a Garth, tentando inquirir mais sobre a razão que os trazia ali.

"Estás certo, Boro, líder dos javalis. Nenhum de vós imagina a importância dessa pergunta. A nossa história não é apenas um conto de infortúnio e, por muito que custe, rogo-vos que acreditem, ela é prenúncio do vosso futuro e é vital à vossa sobrevivência".



Continua, futuramente...

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