Revelação Lunar - Parte II
- Búzio o Bardo
- 14 de set. de 2021
- 9 min de leitura
Atualizado: 2 de ago. de 2022

De novo aquela sensação, uma sensação que conhece tão bem e que não a deixa em paz. Começa com um desconforto no estômago, uma espécie de digestão difícil, mas ao fim de alguns minutos dispara para o peito ganhando a forma de uma mão espinhosa que aperta o seu coração, ameaçando esmagá-lo. Depois, aos poucos, pelo meio do desespero, os seus ouvidos principiam a captar sons distantes, sons que mais ninguém parece ouvir, um sussurro calado, assombroso, do qual ela não conseguia habituar-se. O seu avô sabia bem o que ela sentia, mas, antes que a pudesse ter ensinado, tudo havia acontecido... e ela ficara destinada a lidar com o legado da sua família, sozinha.
O conselho das tribos era tal e qual como tinha imaginado, os líderes sentavam-se à frente formando um círculo onde todos tinham voz igual. A clareira encontrava-se no coração da floresta, junto de um edifício antigo, em pedra. Uma pirâmide cujas faces em forma de escadas haviam sido ornamentadas com gravuras da história perdida. Segundo o seu avô, estes edifícios teriam sido construídos pelos Pastores, aqueles que, em eras passadas, haviam ensinado a língua e as artes por todo o mundo. Na sua floresta, o avô levara-a muitas vezes a um edifício semelhante a este, onde o conselho das tribos se reunia, mas era bem diferente deste. O da sua floresta era um grande círculo de pedra com um grande salão, dentro, e uma lareira que se opunha à entrada. Numa das paredes, uma grande escadaria para o andar superior, cujas paredes e teto haviam sido destruídas há muito, muito tempo, muito antes das memórias contadas e partilhadas pelos antepassados da sua tribo.
Agora, olhando a pirâmide, não deixava de se questionar quantos mais edifícios destes, e de que tipo, existiriam noutras florestas, noutros concelhos de tribos. E poderia ser que, nalgum sítio, os Pastores ainda existissem?
A sensação torna-se mais forte e, galopante, ganha terreno ao seu peito. Nos seus ouvidos um murmúrio.... um burburinho que, sabe, ninguém presente o faz, vem de dentro. Sente.
"Já não sei há quanto tempo aqui estamos, não chegaremos a conclusão alguma. A realidade é que, se eles estiverem a falar a verdade, ajudá-los é o pior que podemos fazer! Se querem passar necessidades, que passem!” fala o jovem lobo, com voz carregada de irritação. O jovem duvida, uma vez mais, com malícia das notícias que o pai de Astrid trazia.
Mesmo lutando contra a sensação que lhe toldava o corpo, escutá-lo não deixava de a atingir. O seu pai não era mentiroso e tudo o que eles haviam dito sobre a doença era a mais crua verdade. O seu pai estava apenas a presenteá-los com o que haviam vivido, um luxo que eles desejavam ter tido. Quando a doença se revelara já demasiadas tribos estavam infectadas, já a floresta sofria e perecia, haviam descoberto a doença tarde demais. Todos os esforços de a conter e combater levaram apenas a mais mortes, tornando a derradeira fuga desconcertada e atabalhoada, o que resultara em muitos deixados para trás, perdendo contacto
com familiares e amigos de há muito.
"É rude duvidar dos nossos convidados desta forma. Mais digo que nada nas suas afirmações, como outros indícios, demonstram qualquer tipo de incoerência na história. Pelo que acho que devemos considerar estas alarmantes notícias." diz Boro, líder dos javalis, que havia acolhido a sua tribo respeitando um pacto antigo, já quase esquecido.
Segundo o seu pai, a bondade dos javalis tinha sido a sua salvação. O pacto já havia caído em desuso, e podia muito bem ter sido revogado. Astrid tinha gostado imediatamente de Boro, que falava sempre com amizade e bondade nos seus olhos negros, mesmo deixando sempre o líder dos lobos zangado, quando falava.
"Eu estou de acordo Robert, devemos ser leais ao nosso pacto. Mais declaro que a minha tribo irá imediatamente partir para noroeste, e verificar qual é a progressão da doença, para melhor prepararmos a sua chegada." diz Rosana, a líder das águias, com altivez. Tentava demonstrar segurança, como uma pedra em que todos se pudessem apoiar neste momento de ânimos confusos, face à sombra que a tribo de Astrid trouxera à floresta.
"Eu escolho preocupar-me quando tu disseres que viste realmente alguma coisa. Quanto à tribo dos humanos, quem quiser ajudá-los que o faça por sua conta, os lobos não têm nada com isso. Não pensem de futuro usar a ajuda dada aos humanos como forma de justificar alguma falha, pois a escolha de os albergar é vossa!” atira Robert, reforçando o seu desagrado para com a tribo dos humanos e deixando, em simultâneo, uma vaga ameaça pairar no ar. Por entre os presentes, levantam-se sussurros nervosos.
“Vamos embora minha tribo, este assunto não nos diz mais respeito." declara Robert, ainda com a atenção sobre si, a sua saída é estratégica, assegurando assim a força da sua posição. As vozes levantam-se em clamor afrontado, quando os lobos se dirigem para fora do círculo ainda antes do protector ao centro do círculo, declarar o fim da reunião. Astrid apercebe-se do sorriso vitorioso no focinho de Robert, enquanto este se desloca para fora da orla da clareira. Conseguira o que queria.
"Observa o lobo... Não esse, mas o que permaneceu afastado da alcateia, junto das serpentes." sussurra uma voz quente, aos seus ouvidos. Era uma voz que fazia caminho por entre os murmúrios que a atormentavam, sobressaltando-a. A sua clareza leva-a a olhar ao redor para verificar o que já suspeitava: não tinha ninguém junto de si. Atendendo à voz, Astrid olha para as serpentes e, tal como ouvira, distante de todos os outros, um grande lobo branco acinzentado, e de olhos díspares, um azul e outro cinzento, destacava-se. No momento em que ela o observa, como se o pressentisse ele ergue o seu olhar penetrante e os seus olhares encontram-se. Astrid não consegue enfrentá-lo por mais do que esse pequeno instante.
"Foi uma forma pouco ortodoxa de sair, no entanto, não há mais informação que possa mudar as opiniões de forma conclusiva. Estou certo de que mais tribos, além da dos javalis, irão participar na ajuda à tribo dos humanos e respeitar o pacto. Não havendo mais nada de novo, esperemos pelas notícias da tribo das águias sobre o avanço da doença." pronuncia-se o esquilo Cristóvão, protector desta floresta, tentando trazer um fim positivo à longa a reunião.
"Por favor, peço uma última vez que reconsiderem!” volta a interceder o pai de Astrid, junto do
concelho. Receando que, tal como aconteceu com eles, devido à natureza da tomada de decisão na floresta, os seus habitantes sejam demasiado lentos a reagir, demasiado lentos a entender que devem partir... "Volto a repetir, vocês têm a dádiva do conhecimento prévio, nós não a tivemos! A doença pode já ter chegado. Basta um pequeno animal, um pequeno insecto, um pássaro, quem sabe até uma semente vinda no vento. Em breve estarão como nós estivemos: a lutar pelas vossas vidas, contra os vossos amigos e os vossos familiares. Por favor, partam connosco!" roga, novamente, fazendo erguer, entre os presentes, um desconforto que se transforma num pesado silêncio.
Era uma ideia completamente abstrata para as tribos que estavam enraizadas aos seus territórios. Partir seria deixar tudo o que conheciam, as suas tradições e cultura, crendo cegamente na improvável realidade de, algures, existir um lugar para todos eles. Era uma possibilidade que nem o chegava a ser na mente de alguém. Que tipo de equilíbrio poderia existir, noutro local, com a sua chegada? Quem os iria aceitar? Era uma aposta, e a vitória seria apenas um sonho. Por isso, tal como eles, estas tribos nem consideravam partir.
"Há outra forma, …", Astrid escuta a voz quente que fala aos seus ouvidos. "Outra forma?", questiona-se, quer dizer que haverá outra forma de sobreviver à doença? Era demasiado importante para o poder esconder, teria de revelar ao seu pai esta sensação que a vinha acompanhar desde cedo, sentia que não era uma conversa que desejasse particularmente ter, mas esta não era uma situação leve.
"Nós entendemos e respeitamos a urgência de tudo o que dizes, contudo, a ideia de abandonar as nossas terras sem ter bem a noção de para onde, nem porquê, é algo que não é sensato. Precisamos de mais informação e pelo menos tentar encontrar uma forma de resistir a esse destino. Obrigado pelo teu aviso, Garth da tribo dos humanos, não o esqueceremos. Quando a tribo das águias trouxer notícias voltaremos a encontramo-nos. Até lá estejam atentos a qualquer indício fora do comum. Dou assim por terminada a reunião, que a sabedoria do Pastores nos guie!” E, assim, o esquilo Cristóvão termina o conselho das tribos, levando todos a seu tempo a abandonar a clareira.
Astrid sente alguém respirar junto a si, consegue sentir o ar quente, contra as suas costas. Tenta perguntar quem é, mas o seu corpo não obedece, tenta mover-se e não consegue, está paralisada. É tomada por um receio imediato. Os olhos reflectem o pânico de se ver imóvel, como se tivesse deixado o seu corpo. Não tem qualquer controlo, ficaria presa na sua própria carne? A ideia aterroriza-a e luta agora com todas as suas forças para pedir ajuda, o que se traduz n um débil gemido.
"Tem calma, pequena, estás apenas a acordar." a voz torna a falar com ela, procurando ajudá-la. Apesar de desconhecer a sua identidade, sente bondade no seu tom e, isso, tranquiliza-a. No instante seguinte, as suas pálpebras abrem-se. A fraca luz matinal atravessa o telhado de juncos do seu abrigo. Com as forças restabelecidas olha sobre o ombro uma vez mais, ninguém lá está, a voz é apenas uma voz.
Ainda arrepiada com a memória da sua paralisia recente, decide sair do abrigo e começar o dia.
Para seu espanto, a sua tribo já está bastante ativa, com os seus membros movimentando-se de um lado para o outro, reunindo provisões para a expedição que todos teriam de fazer em breve. Rumariam para sul para escapar à doença que havia destruído tudo o que ela conhecia.
Varrendo com o olhar ao seu redor, Astrid apercebe-se da ausência do seu pai e sente uma ligeira insegurança. Desde que perdera a sua mãe que tinha a necessidade constante de ter o seu pai por perto. Uns passos mais a diante, e respira profundamente de alívio, o pai conversava com uma javali e uma raposa a poucos metros à esquerda, do seu acampamento. Ela reconhece os dois animais, do dia anterior, do primeiro contato com as tribos desta floresta. Makoto, chamava-se a javali, e Keppler, a raposa.
A sua curiosidade afinada puxa-a de forma óbvia em direção ao seu pai, guiada pelo interesse no teor da conversa do trio. Que planos estariam a fazer? A escassas passadas de chegar perto do grupo, a sensação renasce dentro do seu estômago e Astrid sente os seus passos travados. O som das aves matinais torna-se distante, o vento sobre as folhas desaparece e a pressão no seu coração aumenta. Apesar da sua mente a conduzir em frente, os seus passos encaminham-na para a direita embrenhando-a na floresta. Galhos carregados de folhas obstruem o seu caminho, tornando-o doloroso. Ainda que com dificuldade, ela vai caminhando, pouco a pouco, conduzida. Os sons regressam, pouco a pouco, a par da sua consciência física. Escuta duas vozes jovens que conversam entre si, visivelmente transtornados com qualquer coisa. Ela quer parar, não se quer intrometer, mas os passos continuam a impeli-la para a frente.
"É uma treta! Porque tem de ser ela a ir?" pergunta a voz feminina, claramente irritada e frustrada.
"A mãe é uma das guardiãs em que Boro mais confia, e esta missão tem a vida de todos na balança." a voz masculina profere com dificuldade lutando contra uma timidez aparente.
"Eu sei, Riru, é precisamente por isso que eu não queria que ela fosse! Uma missão desta importância é perigosa de certeza, não perdemos já o suficiente?" contrapõe voz feminina, com um receio abertamente declarado.
"Eu também não quero que ela vá…" responde a voz masculina, com a força da voz a falhar-lhe.
Os passos de Astrid soam alto e as suas vozes, em conversa, já não são suficientes para a ignorarem. Prontamente param de falar e aproximam-se alguns passos, prevendo a sua direção.
"É um dos humanos…" ouve Astrid, a voz masculina dizer, nervosa.
"O que queres?" pergunta a voz feminina, destemida e a plenos pulmões. Os passos de Astrid nunca param, mesmo contra a sua vontade! Consegue agora ver com nitidez os dois jovens javalis à sua frente, ambos expectantes do que a sua chegada significaria. Involuntária ela sente a sua boca abrir e o som sair de dentro de si. Contudo, a voz que sai não é sua, mas sim a voz quente que tem estado com ela desde a reunião de ontem: "Kana, Riru, oiçam-me e tenham fé em mim. Vocês têm de ajudar a Astrid, ela é a única capaz de parar a maldição que está prestes a abater-se sobre todos! Têm de ajudar a…" O seu corpo jovem cede antes que a voz acabe a sua mensagem, os seus joelhos falham e ela cai para o chão contorcendo-se, revirando os olhos que deixam de ver por um instante.
No momento seguinte, ela vê o seu próprio corpo cair no chão, enquanto os jovens javalis se aproximam preocupados. Flutuando, ela vê-se de cima, cada vez subindo mais quando, inesperadamente, uma força poderosa começa a puxá-la para nordeste, atravessando a floresta, por entre um desfiladeiro, acompanhado um grande rio. O caminho parece não acabar e antes de ela ver o destino tudo desaparece e ela está de volta ao negrume. Sente um cheiro forte, a fumo, olha a seu redor e tudo está em chamas. Os gritos da sua tribo ecoam por toda a parte. Aterrada, ela clama pelo seu pai e este surge diante dela, estendendo uma das suas mãos, suplicando por ajuda, enquanto a outra segura a garganta. Da sua boca um líquido vermelho escuro brota abundantemente, asfixiando-o, ela grita por ele, desesperada, mas já é tarde demais.
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