Direções e Atalhos
- Búzio o Bardo
- 18 de ago. de 2022
- 10 min de leitura

Outra expiração pesada, a vontade de ir trabalhar simplesmente não vem... como se houvesse algum dia em que ela viesse! Depois de trinta anos a conduzir um camião, por muito que Manuel inicialmente até retirasse prazer do seu trabalho, chega uma altura em que toda a tarefa se torna repetitiva, acabando por eliminar totalmente o prazer de a fazer.
Hoje em particular, Manuel não tem vontade nenhuma de sair da cama, para complementar o seu desânimo, a discussão com o seu filho na noite passada aumentava a sua atração aos lençóis. Precisava de se ter levantado há vinte minutos atrás mas queria evitar o rapaz. Tanto do seu suor, do seu esforço, para o colocar num bom curso para ele simplesmente querer deixar tudo a troco de um sonho tolo. Manuel conhecia a vida, e sabia-o bem, ela não é para sonhos, a realidade é cruel e quando Pedro acordar pode muito bem já ser tarde demais. Manuel havia gasto demasiado dinheiro, de si! Para depois ver o filho agarrado à roda como ele. A letargia arrasta-o outra vez…
A luz do telemóvel é tão forte que o cega por momentos, despertando-o rapidamente. As notícias não são boas, já não pode mesmo continuar na cama, ou teria de se justificar ao patrão, “Isso é que completava o ótimo dia de hoje!” Diz ao tecto. Contrariado, põe os pés no chão, expirando pesadamente, depois, rapidamente pega na roupa e sai para fora do quarto. Vozes ouvem-se da cozinha, sussurros exaltados, a conversa que ele já esperava na cozinha, ele como o mau da fita na sua própria história. O seu coração acelera, então seria ele o alvo da sua própria família, apenas por ser o mais racional? Outra expiração pesada... Entra para a casa de banho. Muda de ideias, a vontade de ir trabalhar assume o desejo de sair dali.
O som da porta a bater surpreende-o, era fim de semana e aquele rapaz nunca saíra cedo de manhã a não ser por obrigação. O seu filho queria evitá-lo tanto como ele, “Melhor assim.” Pensa com os seus botões, já estava farto de lidar com a sua ingratidão.
“Bom dia, já preparaste a marmita?” Manuel pergunta assim que entra na cozinha, tentando manter a conversa com a esposa num assunto prático, inócuo para ambos.
“Há o resto do jantar de ontem.” Cátia responde indiferente, virada para a bancada, cortando uma fatia de pão que coloca na torradeira sem nunca o olhar. A irritação de Manuel emerge na sua expiração pesada, não encontrando uma razão para a suster, deixa-a correr para fora.
“Não tiveste tempo? Gastaste-o todo a falar mal de mim?” Acusa-a bruscamente. Cátia pousa as suas mãos sobre a bancada, tensa, no entanto, não surpreendida com o ataque do marido.
“Vais recomeçar a gritaria, não chegou ontem à noite?” Responde-lhe ela sobre o ombro, visivelmente magoada com a atitude de Manuel na noite anterior onde os ânimos se tinham exaltado bastante.
“Eu é que estou a recomeçar? Porque não fizeste uma refeição para eu levar?” Continua a perguntar de forma acusatória, sabendo bem que a ausência da refeição se deve ao facto de Cátia estar chateada consigo, algo que ele simplesmente recusa aceitar.
“Ensopado de borrego não é das tuas comidas preferidas?” Cátia responde em tom irónico, sabendo que o marido não gosta de batatas reaquecidas, algo que eleva ainda mais a sua irritação. Ela sabe que ele tem razão, contudo tem exatamente a mesma vontade de a dar como de lhe fazer uma outra refeição.
“Será possível não veres que não faz sentido nenhum? Então ele vai desistir de um bom curso para ser ator? Quando tiver 40 anos ainda está aqui a mamar às nossas custas!” Manuel reutiliza um dos argumentos mais ofensivos que usou na noite passada, contudo não o mais ofensivo.
“Nós não tivemos muitas escolhas mas o Pedro é diferente! Temos a possibilidade de o ajudar a fazer algo de sua vida que ele goste!” Cátia, ainda falando sobre o ombro, ultrapassa a linguagem vulgar de Manuel para o tentar convencer.
“Achas que o estás a ajudar, actor lá é profissão? Só os famosos ganham bem, e mesmo esses são sempre precários, nunca têm um contrato estável, isso é uma boa vida?” Manuel muda de estratégia para um argumento mais racional, demonstrando melhor os seus verdadeiros receios.
“Isso não é bem assim! Não é fácil, é verdade, mas podemos ao menos dar-lhe a possibilidade de tentar?” Cátia vira-se para o marido, sentindo que há uma ponte neste argumento que os dois podem atravessar, uma esperança de encontrarem alguma cedência.
“Tentar o quê? Gastar dinheiro? Isso já ele faz agora, mas ao menos é para ter uma profissão digna! Isto é tudo culpa tua, fizeste sempre a vontade ao menino, ah é só o teatro da escola, não tem mal nenhum, nunca foi coisa de homem! Eu bem quis que ele fosse para o futebol!” Manuel afasta-se da argumentação anterior, receando perder a sua razão, colocando a nú mais receios e preconceitos seus. Os olhos de Cátia abrem-se muito, incrédula na insinuação do marido, entregando-se agora ela à maré da sua ira contida.
“Não vais mais falar assim do teu filho, estás a ouvir? Não te admito!” Cátia grita-lhe, apanhando o homem de surpresa com a violência nas suas palavras.
“Era só o que faltava na minha casa não falar como quero!” Responde Manuel na mesma moeda, tornado a possibilidade de alguma cedência entre os dois cada vez mais distante.
A frustração de Cátia com o marido, tal como no dia anterior, volta a tomá-la por completo. Exasperada, atira com violência os conteúdos do tacho de ensopado de borrego para dentro da marmita. Manuel observa-a igualmente irritado, expirando pesadamente. “Não tens de ir trabalhar?” Cátia pergunta-lhe entregando-lhe a refeição, declarando bem no seu tom o desejo de o expulsar dali, o que é impossível escapar a Manuel, contudo é uma boa saída para ele, também ele não suporta mais esta a discussão.
“Só vocês para me fazerem ter saudades do trabalho!” Atira Manuel enquanto retira a marmita das mãos da esposa. Rapidamente sai da cozinha fungando, em passadas largas até à porta que bate violentamente quando sai do apartamento.
As estradas mais familiares já o deixaram... embora trinta anos depois, quase todas as estradas sejam minimamente familiares. Os caminhos do interior do país revelam a realidade indesejável, pouca vida se vê por estes lados. O relógio parou nestas terras pouco frequentadas de casa abandonadas. Atravessando-as perturbado, os pensamentos não o deixam em paz, sendo ainda uma tempestade a rugir contra as paredes do seu interior. A ideia do seu filho se tornar engenheiro, tinha sido fonte de grande orgulho para si, bem como a sensação de alívio do seu trabalho principal estar quase concluído. Claro que para um pai o trabalho nunca termina, no entanto, seria um grande passo saber que o seu filho tinha uma boa profissão para se sustentar. A ameaça dessas expectativas por meio de um sonho tolo e ainda por cima indigno de um verdadeiro homem, era algo que Manuel recusava aceitar. Seria um desrespeito e um desperdício a tudo o que ele tinha providenciado como pai.
Os seus resmungos enfraquecem a sua atenção o suficiente para o fazer errar a saída, levando-o a caminhos que até ele desconhece! O seu estado alterado é de tal forma que só se apercebe passados largos minutos, algo que ainda o frustra mais. Agora, perdido como se fosse um miúdo que estava a começar, tinha de recorrer ao GPS para voltar à rota correta. Num caminho já bastante secundário encosta o camião à berma. Em poucos segundos já tem uma alternativa, contudo surge a necessidade de ir à casa de banho. Aproveitando que já está parado, sai pela porta do lado da berma para assim se aliviar.
No momento em que os seus pés encontram o chão, algo perturba-o, um ganido sofrido. Durante a sua infância na sua casa sempre houvera um cão, por isso ele sabia reconhecer bem a diferença entre um ganido de medo e um de sofrimento. Este animal emitia um som como ele jamais havia ouvido, arrepiando-o da cabeça aos pés. O silêncio a seguir, faz pouco para o confortar, muito pelo contrário, desconcerta-o, torna-se óbvio o que fazer.
Diante de si estão apenas arbustos pequenos e árvores espaçadas. Aproximando-se mais, vislumbra uma propriedade escondida no meio da vegetação. Procurando por um caminho, Manuel atravessa dificilmente as plantas que lhe agridem as pernas mesmo através das calças. Depois de descer um declive natural pouco íngreme, está junto de uma vedação baixa, daquelas constituídas por uma rede de arame e postes de madeira. Ali, consegue vislumbrar perfeitamente a propriedade, bem como a fonte dos sons sofridos que tinha ouvido. Ele tinha razão de ter ido até ali, no entanto, era muito pior do que ele imaginava.
Chamar de quinta aquele local era algo que desfavorecia todos os outros locais com a mesma denominação. Apesar do espaço até não ser muito grande, pelo chão há ervas por toda a parte. A casa, que se encontra mesmo diante de si, é praticamente indistinguível de um barracão, com as paredes de tijolo ainda só com a primeira camada de cimento tosco. Pelo menos duas das janelas que ele vê não estão instaladas, saindo das suas aberturas cortinas de tecido imundo a esvoaçar na brisa de final da manhã. Junto da casa há um abrigo de telhas de metal com dois carros arruinados pela ferrugem, com apenas uma mota encostada na lateral da casa a perecer-lhe funcional. A completar o ar desolador, à sua esquerda debaixo de uma árvore magra que se assemelha mais a uma vassoura invertida, incapaz de produzir um real abrigo tanto ao sol como à intempérie, está um cão preso por uma corrente. A razão dos seus gemidos sôfregos é agora óbvia. A corrente presa ao seu pescoço que é uma mistura de feridas com cicatrizes, tinha-se enrolado à volta da sua pata e estava a cortar a circulação sanguínea. Esta já se encontrava roxa e ferida, se ele continuasse assim ia perdê-la! Manuel salta imediatamente sobre a vedação que cede e quase o faz cair. Em passo atrapalhado, recupera o equilíbrio aproximando-se do animal. Naturalmente, o cão, ferido e debilitado, desconhecendo a pessoa que se aproxima, tenta-se afastar receoso, latindo de dor com essa movimentação.
“Calma, tem calma, vim ajudar-te.” Diz-lhe Manuel suavemente, tentando demonstrar que não é uma ameaça. Agora mais perto do animal, o seu estado é ainda mais lastimável do que lhe tinha parecido inicialmente. O seu pêlo preto deu, há muito, quase todo o seu território a uma pele escamada e cheia de pequenas feridas da sua própria ação de se coçar. Nas orelhas, carraças gordas espalham-se por toda a parte. Contudo, o que mais preocupa Manuel continua a ser a sua pata. Agora perto dele, consegue ver que está em pior estado do que inicialmente lhe parecia. Tinha de estar assim há várias horas, o que a juntar aos outros maus tratos enfurecia bastante o homem.
“O que estás a fazer, esse cão é meu!” Uma voz seca apanha Manuel desprevenido. Incrédulo, ele vira-se para enfrentar um homem de t-shit preta desbotada e umas calças de ganga sujas e velhas. O rosto do dono da quinta é dominado por uma ira contida pela intrusão sofrida, e nada mais. Ele melhor que Manuel, teria ouvido as súplicas do cão mas em nada o tinham preocupado, só agora sobre a perspectiva de ser roubado é que se tinha preocupado com o animal devastado pelos maus tratos. A surpresa não faz Manuel esquecer isso.
“Então e tu não ouves o animal a sofrer? Eu à beira da estrada ouvi-o bem!” Contra-ataca o camionista, acusando o homem da sua negligência óbvia, o que aparentemente não o perturba de forma nenhuma continuando com o seu olhar gélido sobre si.
“O cão é meu, faço dele o que quiser! Põe-te daqui para fora antes que tenhas problemas!” Ameaça declaradamente o homem, demonstrando que conhecia o estado do animal, no entanto, simplesmente não se importava. Via-o como um objecto, algo seu, não como um ser vivo, aumentando ainda mais a raiva do camionista.
“Se é teu então tens de tratar dele! Não é deixá-lo aqui a morrer aos poucos!” Contrapõe enfrentando o homem que faz apenas um sorriso ameaçador.
“Espera um pouco que já vês de quem eu vou tratar!” Diz o homem com uma expressão sombria, antes de desaparecer na abertura da sua porta. Manuel sente que aquele homem, não é de fazer ameaças vãs. Olhando para animal naquele estado lastimável, sabe que se o deixar ali ele de certo irá morrer. Sem boas escolhas, atira-se sobre o cão, com o tempo contra si, não pode ser brando. As suas duas mãos empurram com toda a sua força o animal para o chão que o tenta morder violentamente, tomado por um misto de desespero e dor. Por sorte, a corrente no seu pescoço está apenas presa por uma cavilha, fosse esta um cadeado, tudo seria mais difícil. Assim que a corrente se solta, Manuel puxa-o junto ao peito, e imediatamente sente três mordidas profundas no seu antebraço antes de o conseguir imobilizar.
“Raio do cão!” Grita entre dentes, mas nunca o larga.
Temendo o regresso do homem, corre desenfreado para a vedação, encontrando o local danificado pelo seu peso onde tinha passado anteriormente, tornando a sua passagem bem mais fácil. A custo inicia o regresso ao seu camião, o cão sempre a debater-se consigo.
“É bom que fujas, porque se te apanho, mato-te!” Consegue ouvir atrás de si. Contudo Manuel tinha a favor o facto do homem não ter visto de onde ele tinha vindo exactamente, apenas sabia que teria vindo da estrada, informação que ele agora se sentia estúpido de ter revelado. Ervas começam a ser pisadas no seu encalço, talvez, ele não sabe, pois nunca se vira receando que isso o atrase.
A subida é mais difícil com o cão no seu colo, mas ali há menos ervas, por isso arrisca a aumentar o seu passo. Um buraco matreiro trai a sua tentativa de acelerar, tirando-lhe o equilíbrio, levando o seu joelho a embater com o chão. Expirando pesadamente, ganha força na ira para se impulsionar e prosseguir a sua fuga. Sentido a sombra do seu perseguidor sobre si, ultrapassa todas as suas dores para recuperar a sua velocidade. O seu camião torna-se visível, alimentando o seu ânimo a acelerar e a conquistar as passadas finais até ao seu meio de fuga. Junto da porta, arrisca soltar uma das mão para a abrir, o que dá abertura ao animal para o morder mais uma vez. Manuel volta a gemer de dor e, já bastante frustrado com o cão, atira-o bruscamente para o espaço no chão do assento do passageiro, e imediatamente fecha a porta. Expirando pesadamente, segura o seu antebraço ferido repetidamente pelo cão aterrorizado, circundando o camião sem tempo para recuperar, entrando no lado do condutor.
Liga o veículo com o coração desenfreado e acelera-o muito para sair dali o mais rápido que consegue, receoso de ouvir um disparo sobre si a qualquer momento. Manuel não volta a ver o homem enquanto se afasta, mas só depois de uns largos quilómetros consegue relaxar. Ao seu lado o cão lambe a sua pata ferida e naquele momento os seus olhares cruzam-se verdadeiramente. Anos mais tarde Manuel jura a todos a quem conta esta história, no fundo dos olhos negros do pobre animal, viu um obrigado sentido que ele jamais esqueceria.
Imagem criada pelo Nitghcafe AI (https://creator.nightcafe.studio/) apartir de uma foto capturada por mim.
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