Viagem #201
- Búzio o Bardo
- 2 de ago. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 11 de ago. de 2022

“Destino alcançado. A sair do hiperespaço.” As palavras de Mar acordam-me na câmara de proteção, entorpecido e nauseado, como de costume. O toque do chão com os meus pés espalha a dor de centenas de agulhas um pouco por todo o meu corpo. A visão recupera a tempo de encontrar o balde metálico onde despejo uma mistura de cuspo, álcool e bílis. Quase toda a minha vida adulta numa nave e continuo sem me conseguir habituar ao sono prolongado.
“Análise.” Requisito, erguendo-me a custo da minha posição de joelhos.
“Relatório de Walkres prova ser fidedigno, elevada concentração de minério Gianere no quadrante B12-H4. Recomendação, exercer precaução enviando sonda. Conjectura, distribuição de Gianere não natural.”
Concentração elevada costuma ser entre vinte mil a sessenta mil unidades, tudo isso num único quadrante? cheira-me a um depósito clandestino? Walkers, maldito, onde me estás a meter.
“Afirmativo, envia a sonda. Procura por rastos energéticos… qualquer sistema de proteção deixa um rasto energético.” Digo a Mar enquanto atravesso o pequeno cubículo da câmara de sono prolongado até ao banco onde deixei a minha roupa dobrada. Um simples fato único cinzento e umas botas segunda pele. Será que Walkres me está a usar para encontrar o depósito de um grupo de mercenários? Seria ele tão estúpido de se arriscar assim, afinal também ele ficaria implicado se eles me apanhassem. Ou saberá ele quem eu sou?
Chego ao convés da Libertina ainda assombrado pela sombra do meu passado… como se alguma vez não o estivesse. Dirijo-me ao cacifo que se encontra no cockpit decidido a vestir o fato de combate. Nunca se pode confiar num mercador de licenças de exploração, muito menos num dos sistemas da orla.
“Resultados da sonda, negativos.” Informa-me Mar quando me acabo de vestir.
“Nada de formas de vida?”
“Negativo, atmosfera inexistente, formas de vida não…”
“Prepara o esquife para sair. Vou enviar balões com os minerais extraídos.” Informo a Mar, enquanto me desloco ainda desconcertado com a situação, à traseira da Libertina onde se encontra o esquife. Há planetas como muito mais Gianere que este, esta disposição é que é altamente improvável, há decididamente algo de esquisito aqui.
Entro no esquife dominado mais pela curiosidade do que pela cautela. Verifico todos os sistemas e parto pondo a cautela de lado. Mal saio da Libertina, desativo o piloto automático para não lhe perder o jeito, como diria o meu pai. Céus nem sei se ele estará ainda vivo ou não. Será que o libertaram, quando eu fui dado como morto? Se o procurasse seria pior, seria de certeza…
Afasto mais uma investida da culpa, direcionando o esquife pelo negrume espacial para a parte escura do planeta. Permito-me um momento a observar a luz azul turquesa da estrela distante. Na distância, outras pequenas esferas planetárias encontram-se mais perto do abraço astral, ao contrário do grande colosso gelado que me aproximo. Ele vislumbra na sua solidão gelada os seus companheiros de sistema bem de longe.
Na sombra do planeta rochoso e sem vida, largos minutos passam até que começo a descer à superfície. Uma vez junto ao solo, através da câmera de infravermelhos, observo várias crateras fruto de centenas de meteoros e uma atmosfera inexistente. Guio-me pela câmera, mas navegação é difícil, obrigando-me a desacelerar, Mar faria isto melhor! Então algo inesperado puxa a minha atenção, levando os meus olhos a levantar para vislumbrar o exterior através do cockpit. Luz… Uma espécie de luz verde surge de uma enorme cratera adiante. Imediatamente, seguro a manche, levando o esquife a alterar a sua direção desferindo um semi-círculo. Vinha tão junto ao solo que só agora vi a luminosidade fraca!
“Mar, que raio de análise fizeste?”
“Os parâmetros da análise seguiram estrita…”
“Esquece! Usa os sistemas do esquife e volta a repetir a análise, esta luz tem de vir de algum lado?” Raios Walkres! Será que já estou dentro de uma ratoeira? Olho de um lado para outro frenético, esperando ver a qualquer momento alguma nave de ataque, mas nada ao meu redor, nada na camera ou sistemas de movimento…
“Resultado da análise: idêntico.” Mar responde apenas, deixando-me completamente confuso. Será algum tipo de tecnologia que escapa aos meus sensores? Contudo, ainda ninguém me atacou e pareço estar bem perto da fonte… Que se lixe! Espero bem que não tenham gasto todos aqueles créditos em sensores de gama militar para agora cair numa armadilha!
Volto a retomar a rota anterior aproximando-me mais e mais da fonte da luz, que se torna crescente. Vou passando cenários na minha cabeça tentando explicar esta anomalia, mas só consigo me arrastar para os velhos medos de ser descoberto pela SIFT. Nunca mais sairia das suas mãos…
Assombrado chego à cratera, mas nada me tinha preparado para o que aí encontrei! É incrível! Em todo o redor da cratera, as maiores formações de Gianere que alguma vez vi espalham-se, criando montanhosos dedos cortantes de cristal que apontam para o céu. Ao centro algo ainda mais arrebatador. Libertando uma luminosidade entre o verde sereia e o azul índigo, está um tronco de pedra incandescente. Da sua superfície brotam uma espécie de filamentos, que à distância que me encontro, parecem pequenos mas que julgo serem mais espessos que o meu esquife. Os filamentos dançam concertados no breu em sintonia a uma qualquer melodia inaudível, reflectindo majestosamente a sua luz em milhares de superfícies cristalinas.
“Mar, recalibra os sensores para detectar formas de vida primárias. Dá-me um relatório sucinto. Parâmetros, forma de subsistência, possível inteligência, comportamento.” Digo num sussurro ainda arrebatado pela visão.
“Afirmativo… Forma de vida encontrada. Estimativa: Forma de vida inorgânica. Inteligência e comportamento: indeterminado. Subsistência: estima-se viver em relação de co-dependência com os cristais de Gianere. Conjectura: formações de cristais de formação posterior à criação da cratera.” Uma nova forma de vida desconhecida… e inorgânica. Numa galáxia praticamente desprovida de vida, uma descoberta como esta seria revolucionária, estudar uma criatura assim, as implicações seriam… Mar disse de co-dependência - Merda. Isso quer dizer que necessita dos cristais, a substância mais importante para as viagens espaciais desde os portões siderais.
“Mar, falaste em co-dependência… achas possível que a criatura necessite dos cristais ao mesmo tempo que os enriquece ou os aumente? Nunca vi formações de Gianere deste tamanho."
“Conjectura: setenta e oito por cento de hipóteses de sobrevivência da criatura dependa dos cristais. Conjectura: quarenta e três por cento de hipóteses da criatura enriquecer/gerar mais formações de Gianere. Conjecturas geradas através de análise preliminar.” A federação nem nada quer saber dos direitos dos seres cientes…
“Faz os cálculos, mineramos apenas o que não perturbe a existência da criatura. Guarda esta informação no bloco de memória externo, apaga tudo da memória interna.” Sorrio amargamente… Jan, ainda sou o mesmo idiota que te arrastou para uma rebelião condenada ao falhanço.
Imagem criada pelo Nitghcafe AI (https://creator.nightcafe.studio/)
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