Perdida em Casa
- Búzio o Bardo
- 6 de out. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 2 de ago. de 2022

O manto cinzento cai sobre as ruas enegrecidas. A luz desapareceu, escorraçada por trás da colina alta que se vestia de casas centenárias. Largada pelo autocarro, prendo-me no absurdo surreal da viagem me ter arrancado ao meu tempo e devolvido a outro, tal é a solidão da calçada, pelo couro e borracha das solas.
Os candeeiros, enfraquecidos pela densa e ensopada névoa, parecem-se com antigas luminárias a óleo, alimentando a teoria de distorção temporal. Os carros, acocorados ao longo dos passeios de pedra, estilhaçam os oníricos devaneios da mente que procura distração no regresso a casa, sobejando apenas um resquício inesperado...
Como quando se sai correndo, atrás dos ponteiros do relógio, receando o esquecimento, algo espicaça a minha atenção. Contudo, este instinto vem acompanhado. A urgência vem de braço dado com a chamada de atenção. Será, este frio, desconforto das roupas húmidas ou algo mais? A diversão momentânea escorrega para longe, um enregelamento furtivo entranha-se, abrindo caminho entre a minha carne ao meu coração.
O vislumbre do final da rua estreita traz-me um alento inesperado. Preparo-me para acelerar passo quando, de um muro alto, cai um enorme gato tigrado sobre o passeio. Em contraste com a ágil queda sobre a calçada, vejo-o enrolar-se numa cambalhota atabalhoada e ficar sentado, a meio do passeio, observando o final da rua com languidez. Sob o ritmado som dos meus passos, que parece aumentar de volume a cada passada, aproximo-me do corpulento animal. Jamais reage, preso que está no seu momento. O seu tamanho amorfo obriga-me a sair para a estrada calcetada. Aborrecida com a descortesia do animal, olho-o de relance, em tom reprovador, para me confrontar com o absurdo desta realidade em que me vejo caminhar esta noite.
Na sua cabeça de gato, o seu rosto, não é focinho de um gato mas rosto de um homem! O choque perturba-me o ritmo e tropeço, com estrondo, nos meus próprios pés. O gato encara-me. A sua expressão tensa dilacera-me fundo, tal é a visão da impossível e grotesca criatura. Não penso mais. Seja o que for, tenho de sair daqui!
Acelero, com o gato-homem sempre debaixo de olho, espreitando sobre o ombro em atropelos do outro lado do passeio, ansiando a esquina ao fundo da rua. Carrego aqueles olhos, sempre abertos, como um fardo pesado sobre mim. Tanto que pensei em outros mundos que caí num deles! Oh deixa-me voltar!
“hiqui hiqui hiqui … tu não és daqui...” troça o gato-homem em tom grave, tom díspar do seu tamanho felino que faz ecoar as suas palavras por todas as direcções da rua deserta e escura.
Cada vez mais confusa, precipito-me para o fim da rua e encontro-me agora na avenida principal. Ali, o nevoeiro adensa-se de tal forma que julgo ser capaz de o cortar com uma faca! O passeio é mais largo, mas pouco conforto me traz. Se antes me sentia presa, agora estou exposta! Não vejo ninguém… contudo, sei que seria incapaz de ver alguém além de um raio de quatro metros, o que me leva a questionar se estarei mesmo sozinha.
“hião hião hião… não estás não...” oiço em resposta aos meus pensamentos. Um riso malévolo. Viro-me para trás, receosa, mas nada consigo perscrutar através da sombra e do cinzento e isso deixa-me ainda mais atormentada! Luzes de faróis batem-me nas costas. Instintivamente, rodo sobre mim para ver o carro que se aproxima. Vislumbro um vulto escuro por entre a humidade grossa e dou um passo ao limite do passeio, apenas para ver os faróis fixarem o seu foco em mim, como alguém que se virasse para me encarar! Dou um passo atrás, chocalhada pelo surreal novamente! As luzes, paradas, olham para mim, vejo abrir-se uma enorme boca, de dentes largos, que larga agora um bafo quente quase palpável. Uma língua que seria metade de mim, em tamanho, passa viscosamente pelos seus lábios carnudos. O gesto lança o meu corpo à trepidação! Grito! Corro pela avenida sem plano, agarrada apenas ao desejo de sobreviver, de tentar chegar à minha porta! As luzes continuam nas minhas costas, sobre o passeio, não oiço rodas mas cascos que encurtam a nossa distância... rapidamente!
“hiers hiers hiers… Desde quando comes mulheres?” troça a voz grossa do gato-homem, vinda da minha frente.
“Desde nunca.” um alto tom nasalado sai do meu perseguidor que, subitamente, pára o seu avanço.
Não deixo de correr, mas sinto as luzes dos seus olhos sair das minhas costas e os seus passos regressam à direção oposta a mim. Desacelero, ofegante, mas não páro até que o gato-homem surge à minha frente, com o seu olhar desconcertante, totalmente focado em mim.
“E tu, comes mulheres?”
“hiar hiar hiar… será que é isso que deverias perguntar?”
Sinto malícia na sua voz… teria ele afastado o meu perseguidor para me ter para si? Com dois passos lentos, aproximo-me da berma do passeio. Ele, rodava apenas o seu rosto, seguindo-me com o seu olhar estático. A estrada parece-me deserta. Desconfiada, arrisco passar para o outro lado. Entre passadas, olho de vislumbre o outro lado da estrada, fito o gato-homem, fito o passeio do outro lado e torno a fitar o gato-homem... ou o sítio onde estava há momentos. Desapareceu! Apresso-me, mas procuro-o nervosamente ao longo do passeio que vou deixando para trás... sem sucesso.
Chego ao outro passeio, com o queixo a bater de tanto tremer de frio quanto de medo. Onde estou? Estas ruas, são as minhas ruas mas... não estou lá, sei-o! Tem de haver uma saída!
“hioida hioida hioida… se calhar estás doida.” a voz do gato-homem ressoa mesmo acima de mim, parecia vir de um telhado, talvez de uma casa das casas à minha frente, mas não espero vê-lo para recomeçar a correr. Corro.
Estou tão perto da minha casa! Tenho de conseguir chegar, só tenho de atravessar o jardim!
O ar frio e húmido queima-me os pulmões, todos os meus músculos se tornam pesados e doem, mas estou tão perto, tenho de conseguir sair deste pesadelo... Piso a relva escorregadia, meio perdida. Estou no jardim, mas não sei em que parte. Arrisco parar para ganhar folêgo e orientar-me. Dou uns passos e piso a terra junto ao lago, que se encontra à minha frente. Sinto, novamente, as luzes daqueles faróis iluminar-me as costas, rodando-me instintivamente para as enfrentar.
“Ele enganou-me… nunca comi mulheres, mas quero!” para meu terror, reconheço o alto tom nasalado.
O lago está mesmo nas minhas costas, se tentar correr ao seu redor ele apanha-me! Escuto agora os seus passos frenéticos e excitados na minha direção... tão rápidos...
Confusa, tropeço em mim enquanto recuo de costas.
“Não! Alguém me ajude!”
“hiada hiada hiada… porque não me deste nada.”
“O que queres?” grito, desesperada, sentindo os olhos dos faróis aquecer-me a pele de tão perto.
“O teu nome!” rosna-me.
“Margarida!”
“Dás-me o teu nome, Margarida?”
“Sim! Ajuda-me!”
“Vieste da água, volta pela água! higua higua higua!”
Corro, sem pensar, e salto para dentro do lago do jardim, ainda escutando os passos dos cascos na terra, junto a mim.
Emerjo do lago em menos de um segundo. O nevoeiro denso desapareceu. Olho em redor e os olhos de faróis desapareceram também. Do banco de jardim, uns passos à frente, um velhote fita-me abanando a cabeça em tom reprovador. A visão é tão quotidiana e familiar... os meus olhos enchem-se de lágrimas, regressei...
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