A Porta
- Búzio o Bardo
- 13 de jan. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 2 de ago. de 2022

"Um tecto obscurecido… o meu tecto obscurecido. Ainda é de noite, ainda tenho tempo para dormir… mas quanto?"
Entorpecido, entre cobertores, procuro a resposta que pouco mais serve do que satisfazer a curiosidade. O conforto de saber que o novo dia continua longe, que a noite permanece jovem. A luz do ecrã cega-me por momentos, fecho um dos olhos enquanto o outro teima em descobrir as horas. Sou recompensado com as duas e meia da manhã.
"Ainda me resta muito tempo! Porque acordei agora?"
Pouso o telemóvel sobre a cómoda, procuro conforto numa nova posição e deixo-me embalar na sensação prazerosa de adormecer novamente. O sono, ainda presente, arrasta-me lentamente quando, de súbito, um distante toque metálico interrompe a descida ao descanso.
O meu corpo tenta ignorar o som mas, assim que me deixo convencer, regressa o ruído distante de metal contra metal. "É apenas uma pequena fricção, incomodativa", penso. Contudo, algo num recanto escondido da mente me roga por atenção.
Outro som. O meu discernimento desperta, um pouco mais… Há algo naquela repetição… algo alarmante! Os meus olhos focam o negrume com atenção, tentando decifrar aquele som perturbador. Outro macio, mas cuidadoso, toque de metal contra metal e o coração acelera no meu peito. De repente, sei o que é! "É a minha porta! Está alguém a tentar abrir a minha porta? Eu tranquei a porta? Por vezes não a tranco…"
Sinto o pânico, como um choque, percorrer todo o meu corpo, estou agora totalmente acordado. Os meus pés, trémulos, encontram o chão frio. Reunindo a coragem, caminho até à porta do meu quarto, com o som trovejante do coração a pulsar no meu peito.
"Talvez deva fazer barulho ao abrir a porta, talvez o ladrão se afaste com o ruído. Mas... e se ele já está a abrir a porta? E se já está cá dentro?"
Aterrorizado, rodo a maçaneta devagar, criando uma pequena fresta de espreitar. Olho para o corredor da casa e foco a porta da rua, expectante. Os seus contornos obscurecidos são difíceis de perscrutar, contudo, para meu alívio, ela encontra-se fechada.
Um silêncio não natural abate-se. Restando apenas a minha respiração e o bater desenfreado do meu coração. "Tenho de confirmar se a porta está trancada, tenho de garantir a minha segurança", decido atrevendo-me a três passos sentindo uma pressão enorme sobre mim.
Dentro, escuto uma voz, a mesma voz suplicante que me alertara a despertar, grita agora para que fuja dali a qualquer custo! Eis que o banal torna-se pesadelo. O comum estalo da fechadura dispara sobre mim despedaçando toda a bravura que me levara até aquele local.
A porta entreabre... lentamente, sem qualquer som.
Dedos de carvão em garra surgem furtivamente, um a um do bréu, como se dele tivessem nascido. A mão, grotesca, força gentilmente a porta a abrir mais e mais... até revelar-se um terror inexplicável. A silhueta é a própria noite mas o seu rosto, projecta-se de um negro que devora à própria escuridão. O brilho da sua pele consome a pouca luz existente à sua volta e os seus olhos são de um pálido verde, tão pálido que parece desvanecer-se no branco da esclera. Contudo, a intensidade penetrante do seu olhar não perde qualquer potência, muito pelo contrário, subjuga-me completamente à paralisia.
Luto, com tudo o que tenho, para forçar os meus músculos a moverem-se, mas, o terror domina-me! O invasor pressente o meu esforço débil e, divertido lança sobre mim um aterrador sorriso, de dentes cortantes, carregado de uma crueldade que me rouba toda a esperança.
Em gestos lentos, vai aproximando-se de mim. Impotente, vou suplicando baixinho a todos os seres superiores que me ajudem, sem que sinta qualquer amparo... A escassos metros de mim, ele pára, ainda vestindo a noite. Com uma delicadeza predatória, coloca dentro de uma bolsa de couro, que se encontra ao seu pescoço, uma chave feita de osso e retira uma outra, de latão queimado. Puxa a porta à nossa direita e coloca a chave na fechadura. Roda-a três vezes para a direita, como se a destrancasse, e abre-a. De dentro daquela porta, outrora a minha casa de banho, oiço o mar e centenas de cigarras a cantar. Antes de entrar, relança o seu olhar dominante sobre mim esboçando um sorriso malévolo.
"Ver-nos-emos outra vez … brevemente", escuto, num murmúrio rouco.
Sinto os pêlos da minha nuca arrepiarem-se, aquela criatura levara arrastados, por aquela porta, o meu ânimo e a minha sanidade.
Grito em loucura, grito com todas as minhas forças até que as perco, por completo. De dentro de mim solta-se uma centelha de luz, uma réstia de esperança que abraço desesperadamente. Salto da cama num grito, estou de volta aos meus cobertores e ao calor apaziguante. Olho a meu redor, confuso. Pelos estores, a luz matinal escapa-se para dentro do quarto. O despertador toca de repente, sobressaltando-me. Suado e a tremer, desligo-o.
Sinto o chão frio por baixo dos pés e deixo-me ficar sentado, com um cobertor sobre as costas, à beira da cama. Respiro fundo, tento acalmar a respiração ofegante, tento encontrar lógica na minha experiência, parecia tudo tão real e, no entanto, um pesadelo apenas.
As tarefas do dia chegam-me ao limiar da mente, exigem-me urgência e, cada minuto que permaneço preso à cama, a urgência cresce. Finalmente, sentido-me capaz de largar a protecção fictícia dos cobertores, levanto-me e agarro uma roupa qualquer para vestir, reúno coragem para tomar um banho quando, diante da porta do quarto, me sinto estremecer sob a memória, tão viva, da recente visão nocturna.
Com o coração pesado, abro a porta devagar. Procuro apaziguar-me na minha mente lógica quando, de súbito, a realidade me bate na cara. Sinto os joelhos falhar e caio, com estrondo, sobre o chão. A sombra da noite toma-me novamente.
A porta da rua está aberta.
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